jueves, marzo 28, 2024
spot_img
Inicio / HomeOpiniãoBrasil: o maior desastre mineiro do mundo

Brasil: o maior desastre mineiro do mundo

-

Por Cristiana Losekann*

Novembro de 2015 ficou marcado pela maior tragédia ambiental do Brasil. Foi também o  maior desastre de mineração do mundo.

Novembro de 2015 ficou marcado pela maior tragédia ambiental do Brasil. Foi também o  maior desastre de mineração do mundo, causado pela ruptura da barragem de rejeitos da empresa mineradora Samarco, situada no município de Mariana, localizado no estado de Minas Gerais, no sudeste do Brasil. Quando analisamos as consequências deste desastre, fica evidente a necessidade de se repensar a definição dos impactos ambientais, quem são os atingidos e como se constituem os atores legitimados a atuarem nos processos de mediação que se iniciam após o evento de um desastre como este.

Segundo o levantamento realizado por Lindsay Land Boweker, este é o maior desastre com barragens, em quantidade de rejeitos, nos últimos 100 anos. A lama de rejeitos matou pessoas e animais, destruiu cidades no estado de Minas Gerais e, seguindo o curso do rio Doce (o 5º maior do Brasil), atravessou o estado do Espírito Santo, chegando no mar. A bacia do rio Doce tem 853 Km de extensão, e, aproximadamente, 3,4 milhões de pessoas vivem na região. Chegando na foz do rio, a lama adentrou o mar e até agora os especialistas não sabem ao certo quais serão as direções que o rejeito irá tomar, nem sua dinâmica no oceano. Estima-se que a lama poderá chegar até as praias do Caribe e afetar profundamente a vida marinha, exterminando algumas espécies.

A extensão dos impactos deste desastre, chegando muito longe da área de influência que havia sido definida no Estudo de Impacto Ambiental desta barragem, é impressionantemente longa e difusa, incluindo o estado vizinho, Espírito Santo. A partir de uma observação in situ dos impactos socioambientais reais da lama de rejeitos da Samarco nesse estado, realizada junto à equipe do Organon (Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais da Universidade Federal do Espirito Santo), elaboramos um relatório que serve de base para as presentes reflexões.

A legislação ambiental e seus limites

A legislação ambiental brasileira define o impacto ambiental como a “alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas” e inclui aspectos humanos e sociais nas dimensões de afetação (vide a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, n.1, 1986). Ainda assim, apresenta contornos restritos nos aspectos socioambientais. No debate sobre conflitos ambientais, Zhouri já enfatizou amplamente os limites da legislação e as deturpações no sistema de licenciamentos ambientais as quais configuram-se em descumprimentos da legislação, que embora tenha limitações, prevê instrumentos de garantia da participação dos atingidos no processo.

Além dos vícios na aplicação da lei, em geral, os aspectos sociais são tratados, sobretudo, por órgãos ambientais, como questões “antrópicas” ou questões “socioeconômicas”. O uso de categorias próprias das ciências sociais quase não aparece e, portanto, mesmo que se possa incluir aspectos culturais ou psíquicos em categorias como, “bem-estar da população” ou “atividades sociais e econômicas”, para dar alguns exemplos presentes na legislação, no uso efetivo dessas categorias, esses aspectos ainda são negligenciados e prevalece uma perspectiva de “hazards”. Segundo Valencio: “A teoria dos hazards enfatiza uma abordagem geográfica, na qual os mecanismos físicos, a distribuição temporal e espacial e dinâmica de eclosão dos eventos físicos têm maior peso, enquanto a teoria dos desastres, construída desde uma abordagem sociológica, enfatiza as considerações sobre a organização social complexa e o comportamento coletivo”.

O espaço para a participação e mesmo para a autoidentificação dos sujeitos atingidos é praticamente inexistente, ficando restrita às audiências públicas as quais cumprem mais uma função de arena que expõe os conflitos (e por isso é um espaço importante) do que um espaço de decisão. Assim, a forma como as categorias presentes na lei é operada pelos órgãos ambientais e especialistas impõe um sentido bastante restrito aos impactos ambientais.

Os (diversos) impactos socioambientais observados no Espírito Santo

A dimensão social dos impactos é muito mais ampla. Embora estes sejam bastante difusos, não são meramente quantificáveis. Se dermos uma atenção mínima à fala das pessoas já se pode constatar vários outros efeitos causados pelo desastre que escapam às categorias previstas nos protocolos do licenciamento ambiental e quem vêm norteando as medidas de avaliação e reparação dos danos neste desastre.

No Espírito Santo a escassez de água, que afetou principalmente o município de Colatina, gerou um verdadeiro caos social em função da inabilidade na elaboração do plano de distribuição da água. Além da falta d’água em si, ocorreram graves situações de conflito e de desagregação na sociedade culminando com a entrada de pelotões especiais da polícia e das Forças Armadas. Os efeitos da escassez d’água se propagam ainda na abertura desesperada de poços artesianos em várias localidades. Sobre os impactos de todos esses poços abertos saberemos somente no futuro.

Já a contaminação da água inviabilizou a pesca de todas as comunidades ribeirinhas ao longo do rio Doce. Todos tiveram suas atividades interrompidas. Mas, como dissemos antes, a lama foi longe, chegou ao mar e inviabilizou a pesca no distrito de Regência e arredores. Associado a isto, outras atividades ligadas à pesca, como a produção de redes, anzóis, gelo ou frigoríficos também foram inviabilizadas.

O medo se instaurou nas comunidades. Os pescados estão encalhados, ninguém quer comprá-los. A falta de informação, a exposição despreparada do tema na mídia, o silêncio das autoridades, tudo isso, alimentou a formação de um estigma que começa a se tornar evidente. Muitas pessoas já reclamam que ninguém quer comprar verduras, legumes ou qualquer coisa minimamente relacionada à água e que venha da região. Assim, além das lavouras que estão, de fato, sendo perdidas, pois muitos ribeirinhos dependiam da água do rio para a irrigação, outros produtores sentem os impactos na queda das vendas.

Pelo menos três praias da região estão interditadas em plena época de férias e verão. O surf e outros esportes aquáticos foram inviabilizados e a lama afetou, ainda, o turismo peculiar de Regência (de pequeno porte e familiar). Além disso, pequenos comerciantes sem condições de sustento juntaram-se a um grupo de ribeirinhos e juntos ingressaram em um processo de ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocorre em uma fazenda próxima à região.

As crianças não podem mais brincar no rio. Em alguns lugares, tais como a comunidade de Maria Ortiz, o único lugar para brincar era o rio, já que a vida é vivida num apertado espaço entre os trilhos do trem da mineradora Vale, que passa a cada dez minutos carregado de minério de ferro a céu aberto e o rio Doce, agora cheio de rejeitos. O minério está por todo o lado, não há escape. A estante da sala na casa de uma ribeirinha, que foi limpa de manhã, à tarde já está cheia de pó de minério e não há água nem disposição para limpar tanta sujeira.

O peso da tragédia recai mais sobre as mulheres. Multiplicam-se desde então os relatos de violência doméstica, muitos deles em função do aumento dos casos de alcoolismo entre os homens. Além disso, violações de diversos direitos também foram observadas, como a truculência da polícia diante dos vários protestos que têm ocorrido. Truculência e desrespeito foram as respostas imediatas que as pessoas do assentamento Sezínio do Movimento dos Sem Terra, localizado no município de Linhares, receberam ao reivindicarem, com uma barricada na ES-245, que a prefeitura construísse uma barragem de contenção entre o rio Doce e as lagoas que abastecem as cem famílias que moram no assentamento.

Se os impactos em geral precisam ser pensados de forma mais ampla e envolvendo a própria comunidade atingida, incluindo a dimensão emocional, cultural e as dinâmicas políticas pré-existentes, é importante, também, observar como os atingidos reagem, resistem e constroem politicamente suas mobilizações.

Os atingidos e a legitimidade dos atores

Os processos de mobilização de afetados por grandes empreendimentos extrativos são sempre complexos. Para compreende-los é necessário matizar a análise e construir diferenciações que nos permitam entender tal complexidade. Podemos compreender, inicialmente, que nesses contextos existem os “afetados em si” (não necessariamente mobilizados ou autoidentificados enquanto tal), os “afetados mobilizados” e os “mobilizadores de afetados”.

A diversidade organizativa pré-existente nos territórios afetados pelo desastre é grande. Há associações civis, mas, também, grupos que se identificam como comunidades tradicionais que se organizam através de outros desenhos. No caso dos pescadores, por exemplo, temos colônias, associações, federações e movimentos autônomos. É necessário, portanto, expandir o olhar para os variados atores e coletivos. Alguns grupos e indivíduos já vinham se mobilizando no Espirito Santo e em Minas Gerais em torno do enquadramento de “afetados” pela mineração, por petróleo e por gás. Contudo, tendo em vista a magnitude dos territórios atingidos, certamente a maior parte das pessoas não estava engajada como “atingido” antes desse desastre.

Em uma situação de desastre abrupto, imprevisto, o enquadramento de atingido leva um tempo para ser constituído entre os sujeitos, pois, essa nova condição surge repentinamente e afeta diferentemente as pessoas, atravessando suas identificações pré-existentes. O desastre não é por si um amálgama que reúne as pessoas. Alguns talvez nem percebam o quanto estão sendo afetados pela lama de rejeitos.

Tendo em vista esses aspectos, é fundamental que atores mobilizadores possam atuar junto aos vários grupos atingidos. Não se pode negligenciar movimentos sociais importantes que vêm de longa data atuando nas causas de atingidos, como é o caso do Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB) que surge formalmente na década de 1980 para articular e organizar a defesa das pessoas atingidas por barragens hidrelétricas.

No atual desastre, o MAB tem sido sistematicamente impedido de participar e auxiliar os atingidos em reuniões com a empresa Samarco. Isto vem ocorrendo em Minas Gerais e no Espírito Santo. Além disso, a própria Samarco tem reivindicado a prerrogativa de definir quem são os atingidos. Em uma reunião realizada em dezembro de 2015 na comunidade ribeirinha de Mascarenhas em Baixo Guandu no ES a Samarco bloqueou a entrada de um integrante do MAB e dos jornalistas que o acompanhavam. Neste episódio se repete uma prática comum no relacionamento das empresas mineradoras com as comunidades atingidas: elas escolhem algumas lideranças locais e realizam negociações em reuniões fechadas.

Ora, eliminar os atores mobilizadores dos processos de negociação e debate entre empresa e afetados é um erro gravíssimo (e uma estratégia desleal), que desconsidera as formas como se constituem os processos de ação coletiva e cujos efeitos recaem evidentemente sobre o lado mais fraco. Reconhecer a importância da participação de atores mobilizadores já constituídos não significa esvaziar a potência política dos sujeitos atingidos nas suas individualidades. Tal como sugeriu James Scott, em seu livro Domination and the Arts of Resistance, para além do discurso público que explicita as relações de poder e torna os enfrentamos visíveis, existe um discurso oculto, uma infrapolítica dos subordinados que precisa ser considerada sob pena de acharmos que a dominação é simplesmente aceita pelos subalternalizados.

A articulação entre uma dimensão oculta e uma pública do discurso político necessita, no entanto, da participação da multiplicidade de atores já constituídos e em constituição para que as situações de injustiça ambiental geradas pela ruptura da barragem de rejeitos (neste caso) sejam articuladas em discursos transformadores das condições de vida desses sujeitos. Pois bem, tudo que já conhecemos das práticas das empresas do setor de mineração nos mostra que é exatamente isto que elas buscam evitar.

As estratégias de atuação da empresa

A forma de relacionamento da empresa com as comunidades gera fragmentação, na medida em que ela individualiza os contatos com a comunidade e desconsidera a complexidade organizativa local, escolhendo alguns atores para se relacionar. A tese defendida recentemente por Giffoni já se constitui uma referência no tema, e nela fica claro que a gestão de riscos sociais conta com estratégias de mapeamento e neutralização de atores sociais críticos às empresas. A autora observa que são claras as intervenções estratégicas que buscam cooptar lideranças ou utilizar conflitos locais para produzir desconfiança e insegurança nas relações sociais locais. A partir de metodologias de identificação dos stakeholders, as empresas desenvolvem projetos de radiografia da mobilização social com o objetivo explícito de diminuição dos conflitos entre comunidade e empresa.

Essas práticas estão amparadas em conceitos e avaliações tais como as de “risco social” e “risco político”. Estas ideias envolvem uma série de instituições de medição ligadas ao mundo coorporativo da mineração, e servem para avaliar os riscos dos negócios. Através de instrumentos como a “licença social” e os investimentos em projetos culturais que podem ser revertidos em indicadores da reputação das empresas. Já na avaliação de “risco político” dos países inclui-se enquanto medida de “violência política”, greves, tumultos, comoção civil, sabotagem, terrorismo, entre outros. Ou seja, processos de contestação atrapalham os negócios do setor da mineração.

Em uma comunidade ribeirinha visitada, ouvimos sobre um agente de saúde que faz a intermediação entre a empresa e a comunidade, selecionando pessoas que supostamente entrariam em programas de benefícios da empresa. Mães relataram com indignação que algumas crianças foram registradas em uma espécie de cadastro enquanto outras não: “Ele pede à filha dele para sair com uma prancheta e ir pegando alguns nomes de crianças”. Interessante é que ninguém sabe para que serve o cadastro, mas o tom é de reclamação, elas supõem que estão perdendo algum benefício.

Na distribuição da água também se institui essa relação. Algumas pessoas receberam água, outras não. Algumas receberam mais, outras, menos. É preciso levar em conta que em uma situação de precariedade material qualquer coisa pode se transformar em recurso a ser disputado. Este padrão de interação gera a rivalidade por recursos, ressentimentos e desconfiança entre as pessoas. Ambiente que desfavorece a construção da ação coletiva e o surgimento de organizações fortes nos territórios afetados.

Na foz do rio Doce, a empresa contratou muitos pescadores para tarefas de contenção da lama e retirada dos animais mortos. Uma moradora nos contou que eles saem às 5 horas da manhã e precisam ficar todo o dia nas máquinas que trabalham na foz do rio, monitorados por câmeras de vigilância. Há uma quebra na rotina a qual já não permite mais os encontros e conversas em espaços públicos habituais – espaços fundamentais para trocar ideias, formar opinião e construir a ação coletiva.

Assim, as pessoas com as quais conversamos tendem a fazer um relato pejorativo do próprio caráter dos membros da comunidade. Entre os pescadores, nos diversos lugares por onde andamos, comenta-se que “pescador é desorganizado”. Em uma conversa com um grupo as mulheres ribeirinhas denunciam que ali na comunidade é cada um por si. O fato dos pescadores estarem recebendo dinheiro da empresa, ou trabalhando para ela, não é bem visto entre alguns.

Há, também, uma assimetria imensa entre os atores em relação: de um lado uma comunidade fragmentada, de outro, uma grande empresa transnacional. Em um contexto desses tão complicado, é fundamental que grupos organizados que já enfrentaram situações similares de desastres, que conhecem as estratégias das empresas e que discutem em uma ampla esfera pública temas como os da mineração e das barragens, possam atuar em conexão com os sujeitos atingidos. Isso sim, respeitando suas singularidades locais e colaborando para que as medidas de reparação aos impactos sejam colocadas em termos de direitos amplos que foram violados pela empresa e complexificando, também, as definições instituídas das legislações existentes.

Por fim, os movimentos sociais constituídos têm, também, uma importante contribuição, em um sentido mais amplo, na superação da invisibilidade das injustiças sofridas pelos afetados e na articulação de uma explicação política para essas situações. Eles têm o papel de introduzir de forma contundente o tema da mineração e demais grandes projetos de desenvolvimento nas agendas políticas nacionais e global. É o que têm feito grupos tais como, oComitê em defesa dos territórios frente à mineração e o Observatorio de Conflictos Mineros de América Latina.

Constituem-se, no momento atual, no único caminho para isso, já que os atores estabelecidos da política são os fomentadores deste modelo de desenvolvimento. Os movimentos sociais têm, portanto, o grande desafio de conquistar amplamente a opinião pública, fazendo com que o sujeito que mora nas áreas urbanas dos grandes centros e a classe média perceba os impactos que a mineração causa para comunidades distantes, formada por grupos que dependem da interação com a natureza, do rio, dos peixes ou da pequena produção agrícola.

----------------------------------------------------------------------------

* Cristiana Losekann es Profesora del Departamento de Ciencias Sociales de la Universidad Federal de Espirito Santo, Brasil. Coordinadora del Proyecto/Grupo Organon, que investiga y apoya a los movimientos sociales en Brasil con apoyo jurídico a causas colectivas.

Publicado en Opendemocracy

DEJA UNA RESPUESTA / LEAVE A REPLY

Por favor ingrese su comentario!
Por favor ingrese su nombre aquí

- Advertisment -spot_img

MAIS RECENTE