aliadas na expulsão de comunidades na Amazônia brasileira
Por Renata Bessi -22 de maio de 2023
Foto de portada: Anderson Barbosa
A justiça brasileira cancelou as matrículas de duas propriedades da maior produtora de óleo de palma sustentável das Américas, a empresa Agropalma, no estado do Pará, epicentro do monocultivo de palma africana no Brasil, porque são terras griladas. Territórios de comunidades quilombolas estão nestas terras, que continuam sob posse da empresa.
Desconsiderando o conflito agrário e a decisão judicial que anulou os registros de propriedade, Agropalma está a ponto de comercializar a floresta que sobreviveu ao desmatamento que deu lugar à palma africana - que conta com uma certificação global de sustentabilidade, a RSPO.
A empresa lançará no mercado voluntário de carbono o Programa REDD+Agropalma, com vida útil até 2051, sem realizar consulta às comunidades levando em consideração os estândares internacionais previstos na Convenção 169 da OIT. O programa está na fase final de certificação pela organização dos Estados Unidos VERRA. No comunicado ao mercado e no projeto do programa, obtido por esta reportagem, a empresa omite o conflito.
Enquanto isso a Agropalma aumenta a vigilância armada e o controle sobre os bosques para manter estável o estoque de carbono a ser comercializado, o que tem aumentado o conflito no território no último ano e meio, já que comunidades tradicionais vivem dos rios e da floresta. Entre os eixos principais do programa REDD+, que serão colocados em prática nos próximos anos, está o incremento do sistema de segurança e vigilância privada dos bosques.
Expulsar para conservar
Quem percorre o Alto Rio Acará, estado do Pará, na Amazônia brasileira, observa em diversas localidades ao longo de suas margens pedaços de madeira que serviram de paredes de casas ou abrigo para animais, caco de telha, restos de trapiche, evidencias de que aí, em anos passados, viveram pessoas em comunidades.
A evidencia mais forte da vida nas margens do Acará são os quatro cemitérios ancestrais onde estão enterrados indígenas e quilombolas - descendentes de africanos que se rebelaram e fugiram da condição de escravos, mantidos por portugueses, por volta do século 19. Cruzes de religião de matriz africana acompanham catacumbas que resistem ao tempo.
Cruz de negro vanjoca, cemitério da Nossa Senhora da Batalha. Foto: Elielson Silva
Um dos cemitérios foi violado e invadido pelo dendê, também conhecido como palma africana ou azeiteira, monocultivo que domina quilômetros e quilômetros da paisagem desta parte da Amazônia. Várias sepulturas foram removidas e, atualmente, as que restaram estão no meio da plantação de dendê da empresa Agropalma, que se autodenomina a maior produtora de palma sustentável das Américas. “Minha avó está embaixo deste dendezeiro”, lamenta o quilombola Raimundo Serrão, de 62 anos.
Agropalma nega que tenha plantado palma em um cemitério.
Como Serrão, dona Maria, também quilombola, vivia com seu marido e filhos em uma das comunidades que se levantaram ao longo do rio, a Nossa Senhora da Batalha, no município de Tailândia, a 150 km da capital do Pará, a cidade de Belém.
Ainda hoje eles se lembram, e é possível ver os resquícios, da escola, da igreja, do salão de festas que faziam parte da comunidade. “Quando a gente morava lá, a gente tinha de tudo. A gente plantava feijão, arroz, mandioca, criava porco, galinha. Era uma fartura, a gente pescava e caçava para viver, tomava água direto do rio”, lembra dona Maria.
Nossa Senhora da Batalha está no epicentro de expansão da produção do dendê no Brasil, no nordeste paraense, onde estão plantados cerca de 23 mil km2 de palma, o que equivale a uma área maior que a de El Salvador, produzindo um volume de dendê que corresponde a 90% da produção brasileira, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Estado do Pará.
O polígono do dendê no Pará é composto principalmente pelos municípios de Acará, Moju, Tailândia e Tome-Açu. A fronteira de expansão se situa na região de encontro do rio Moju com o Acará, rio com 900 km de extensão que liga o interior do estado do Pará a Belém, uma região propicia à palma pelo excesso de calor e água, característico da região amazônica.
Guilherme Carvalho, doutor em Planejamento do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, explica que o nordeste do Pará, epicentro de expansão do dendê, é uma região estratégica que conecta a Amazônia ao mercado mundial
A quilombola Maria tem três filhos e três netos enterrados no Cemitério Nossa Senhora da Batalha.
Dona Maria. Foto: Renata Bessi
Como vem sendo argumentado por órgãos do Estado, como a Defensoria Pública e o Ministério Público, por estudos antropológicos e pelos próprios quilombolas, a comunidade Nossa Senhora da Batalha, assim como outras comunidades tradicionais, foi expulsa da beira do rio Acará em “um processo histórico de incentivo à produção do dendê”, nas palavras da defensora pública Andreia Barreto.
Apesar da expulsão das terras, os quilombolas que não vivem mais na beira do rio, os que estão nos assentamentos urbanos cercados por palma, utilizam suas antigas estradas, engolidas pelas plantações de dendê, para chegar em sua antiga comunidade onde ainda sobrevive a floresta amazônica. Circulam pela mata, realizam rituais sagrados no cemitério ancestral, caçam e pescam como meio de sobrevivência.
Existem também os quilombolas que resistem em comunidades, como a Vila Gonçalves, na beira do rio, vigiados pela segurança privada da Agropalma, já que a floresta faz parte das terras controladas pela Agropalma.
A circulação neste território, em posse da Agropalma, nunca foi “totalmente tranquila”, como descreve o quilombola e presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará, José Joaquim dos Santos Pimenta. Mas no último ano e meio o conflito tem aumentado “porque a empresa foi dificultando nosso acesso ao território até chegar ao ponto de querer proibir nossa circulação no que ainda existe de floresta”.
A empresa estabeleceu uma estrutura de interdição do território por rio e por terra. Barreiras nas estradas, torres de vigilância, postos de controle tanto no rio Acará como nos caminhos tradicionalmente utilizados pelos quilombolas.
Interdições no rio Acará, nos caminhos utilizados pelos quilombolas. Fonte: Defensoria Pública do Estado do Pará
Sem passagem nos caminhos tradicionais dos quilombolas. Foto: Anderson Barbosa
Guardas privados armados da empresa Prosegur, empresa de segurança presente em mais de 26 países em todo mundo, contratados pela Agropalma, circulam frequentemente utilizando caminhonetes, motos, bicicletas, motores de popa, rabetas, canoas e barcos de alumínio, vigiando o território. Além do controle físico do espaço, existe o controle por meios tecnológicos, como drones e câmeras de longo alcance. “Quem for por terra eles pegam e quem for por água também”, disse Serrão.
A equipe desta reportagem tentou chegar no cemitério Nossa Senhora da Batalha e nas margens do rio Acará, onde ainda existe a floresta amazônica, acompanhada de quilombolas. Nos apresentamos no primeiro de três postos de controle antes de chegar no rio. Serrão, anfitrião do seu território, disse aos dois vigilantes que faziam a guarda que éramos seus convidados e que gostaríamos de visitar o cemitério.
“Nós vamos avisar nosso inspetor, aí o senhor aguarda. Passa os nomes das pessoas que são os convidados de vocês para a gente estar passando na inspetoria e conforme eles nos digam a gente vem dar a resposta para vocês”, disse um dos vigias que se disse chamar Toni.
Nós, da equipe, nos identificamos. Os quilombolas também. Esperamos.
O calor era forte e úmido. Fazia quase 40 graus. Estávamos rodeados por palma. Hectares e mais hectares de verde oliva do dendê sufocava de tanta monotonia.
“Aqui”, e mostrou o que parecia ser o leito de um pequeno rio que estava seco. “Olha este igarapé ou o que deveria ser um igarapé. É o Cariateua”. Costumava ser um braço do rio Acará. “Ele vem aqui de cima e desce até o rio Acará, uns 400 metros daqui até lá. Neste percurso tem três portarias da Agropalma”, explica.
“A gente tinha uma roça que o fundo do terreno dava neste Igarapé. Nossa casa ficava um pouco longe. Então a gente ia de manhã para a roça, passava o dia cuidando da terra e no final do dia voltava para a casa”.
Em meio às lembranças de Diana a resposta esperada chegou. Tínhamos que estar inscritos na lista da Agropalma para poder entrar no território. Não estávamos. Nossa presença não era permitida.
“Tem que depender da empresa. Ela tem que liberar para a gente poder entrar no nosso território com um convidado nosso. É como se o porteiro do seu prédio, que não tem nada a ver com você, fizesse o controle de quem pode entrar ou não no seu apartamento. Para mim é o fim, sabe”, desabafou Serrão.
Em fevereiro de 2022, a associação dos quilombolas teve que apresentar uma lista de nomes de pessoas que seriam autorizadas pela empresa a ter acesso ao cemitério e ao rio, mediante a apresentação de uma identificação nas portarias criadas pela Agropalma.
Guardas privados da Agropalma verificam se quilombolas estão na lista de nomes autorizados para acessar o território demandado pelas comunidades. Foto: Anderson Barbosa
Agropalma
Os produtos da Agropalma são destinados a grandes empresas da indústria do alimento, de panificação, confeitaria, culinários, lácteos e sorvetes, fritura industrial, cosméticos e oleoquímicos, sendo que 95% da produção é para o mercado interno brasileiro e 5% para Europa e Estados Unidos. Em 2022 anunciou que irá entrar na produção de biodiesel. Agropalma é controlada pelo conglomerado Alfa com segmentos de negócios, além da indústria da palma, nas áreas financeira, comunicações, hoteleira, varejo e construção.
A exigência fez parte de um acordo firmado entre empresa e a associação quilombola no âmbito de uma ação judicial de reintegração de posse, imposta pela Agropalma. A equipe desta reportagem teve acesso ao expediente, ainda aberto.
Em janeiro de 2022, os quilombolas ocuparam o território que demandam como forma de protestar contra o aumento dos mecanismos de interdição. A empresa então pediu a reintegração de posse.
O termo do acordo alcançado em uma audiência de mediação diz que se garante “aos integrantes da associação requerida livre circulação e passagem na área objeto do litígio, circulação e passagem estas que deverão ocorrer apenas mediante a identificação prévia da pessoa”.
“Na verdade, tomamos na cabeça com este acordo”, resume o presidente da associação.
Por um lado, a empresa reclama, em registros que constam no expediente da ação de reintegração de posse, que os quilombolas no cumprem o acordo e resistem a se identificar.
“Ingressaram na área pelo rio Acará, sem que o acesso fosse realizado pelo ponto de controle da Agropalma, configurando a entrada clandestina (...). Insistem em adentrar no imóvel por vias clandestinas (sem guaritas e controle de acesso)”, relata a empresa em um documento anexado ao expediente da ação.
As “vias clandestinas” são os caminhos usados ancestralmente, contrapõem os quilombolas.
Por outro lado, os quilombolas alegam que o controle do território aumentou depois do acordo. “A torre que vigia o cemitério, por exemplo, foi construída depois que a gente ocupou. A gente foi capinar a área do cemitério, me senti neste dia um prisioneiro. Eu estava trabalhando e o cara armado me vigiando, e câmera na torre. Meus pais trabalhavam quase de graça para os portugueses, mas não chegaram neste ponto de ser vigiados por homens armados”, disse Serrão.
A defensora pública, Andreia Barreto, reafirma que neste processo “acabou que a empresa construiu novas guaridas, reforçou frentes que até então estavam livres”. Resumidamente, “ampliou o cercamento”.
O acordo foi o termo “possível neste momento para dirimir o conflito”, explica a defensora, já que a empresa tinha aberto buracos, valas, colocado obstáculos para conter a presença dos quilombolas. Para ela, o conflito somente vai se resolver quando o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão do Estado responsável por regularizar as terras, regularize as terras demandadas pelos quilombolas.
Plantação de dendê da Agropalma. Foto: Anderson Barbosa
Quem come dendê?
Dona Maria diz que não entende a necessidade de tanto aparato de vigilância nas terras que a Agropalma diz ser sua. “Ninguém vai entrar para roubar dendê. Quem come dendê? Eu não como dendê”.
O ponto principal da vigilância da Agropalma hoje não são os seus 34 mil hectares de plantação de dendê, senão os 64 mil hectares de floresta amazônica que estão em sua posse sob a figura de reserva legal.
O território da comunidade Nossa Senhora da Batalha, assim como das demais comunidades representadas pela Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará, está exatamente em uma parte desta reserva legal.
Assim descrevem os funcionários do Iterpa em um relatório de vistoria, realizado em decorrência do processo de regularização do território quilombola, cujo expediente, ainda aberto, foi revisado para esta reportagem:
“O componente florístico dessa área (o território requerido pelos quilombolas) compõe-se predominantemente de mata secundaria, onde predomina a capoeira e o capoeirão, reserva legal da empresa Agropalma”.
Agropalma criou um programa de “proteção florestal” e um departamento específico para vigiar as fronteiras da reserva legal, composto por coordenador, supervisor, inspetores e guardas florestais. O gasto com o programa é de R$ 1,5 milhão por ano, de acordo com anúncios feitos pela empresa.
No último ano, Agropalma reforçou a quantidade de guardas que vigiam a floresta. “Contratamos uma equipe especializada de cerca de 100 guardas florestais treinados e armados”, anunciou com o título “Defendendo nossas florestas”, no seu relatório de sustentabilidade de 2021, publicado no final de 2022. Antes eram 30 guardas florestais.
Em pontos estratégicos das reservas, existem casas da Agropalma onde residem parte dos vigias, “para facilitar as rondas”.
A estratégia de segurança da Agropalma não se limita a seus próprios guardas florestais armados. “Nos envolvemos com funcionários dos governos local e estadual e colegas do setor para desenvolver uma estratégia de segurança para todas as nossas regiões de operação”, informa em seu relatório de sustentabilidade referente a 2021.
No expediente da ação de reintegração de posse, os quilombolas denunciam em diversos casos ter sido agredidos e ameaçados por guardas florestais armados da empresa. Em um dos casos, em abril de 2022, a empresa garante ao juiz que, “decidiu substituir a guarda armada por vigilantes com armas não letais, em quatro pontos de monitoramento (...)”. Os quilombolas garantem que as ameaças continuam.
A ameaça também está impressa em placas espalhadas pela empresa em toda a reserva legal que advertem a proibição da caça e da pesca. Nas margens do Acará as placas se fazem presentes a cada mil metros, pelo menos.
“Eles tomam o peixe, tomam a caça, os apetrechos que a gente usa para pescar e caçar. Escoltam a gente para fora do rio ou da floresta, como se a gente fosse criminoso. É uma humilhação”, relata Santos Pimenta.
Ilda Maria da Silva Campos, da ARQVA, relata o controle exercido pela empresa no território
As interdições fazem parte da “política de preservação de floresta e biodiversidade” da empresa, segundo a qual a proibição “possibilita a manutenção dos processos ecológicos dentro dessas áreas”.
De acordo com o coordenador internacional do Movimento Mundial pelos Bosques Tropicais (WRM, em suas siglas em inglês), Winnie Overbeek, este modelo de conservação “é um modelo global, hegemônico, em que se constrói, muitas vezes literalmente, uma ´cerca´ em torno da floresta que ainda existe”.
O que se idealiza é uma floresta sem gente “a partir da visão de que as comunidades que sempre viveram e dependeram da floresta são as principais ameaças para o desmatamento”.
Overbeek classifica esta visão de floresta como “contraditória e mentirosa”, já que “deixa o processo de desmatamento e suas verdadeiras causas - como o agronegócio, a mineração, as plantações industriais de monoculturas - a nível global intocados”.
As florestas, em todo o mundo, “são resultado de interações complexas ao longo da história com todas as espécies, inclusive a humana, como é o caso da Amazônia”, ressalta.
No acordo de conciliação entre empresa e associação de quilombolas no âmbito da ação de reintegração de posse, se reconhece “que os rios e suas margens tratam-se de bens públicos e de uso comum que, portanto, não podem impor obstáculos ou restrições à circulação uns dos outros, tampouco à realização de atos como a pesca nos mencionados locais”.
Apesar disso, as denuncias de aumento das restrições continuam, inclusive continuam sendo tema de ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público e Defensoria Pública do Pará.
“Tem muita fome aqui, sabe. Tem muito gente que depende do rio. Mas tem muita gente que deixou de ir pescar, porque o nome não está na lista da Agropalma.
Rio Acará. Foto: Renata Bessi
Para quê conservar?
Santos Pimenta relata diferentes momentos que vivenciou de destruição da floresta amazônica promovida pela Agropalma. Um deles, em especial, foi no final de 1999. “Não gosto nem de lembrar, foi uma das maiores destruições ambientais que já presenciei. Foi tão grande que até o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) veio e multou a empresa”.
Segundo o quilombola, foi uma área gigantesca. “Centenas de milhares de animais morreram dentro do fogo. Eles derrubaram com trator e tacaram fogo. A gente encontrava bando de macacos, guariba, onça, veado, todos queimados. Foi uma coisa terrível”, lembra.
Agropalma, em seus relatórios de sustentabilidade, admite que desmatava. Desmatou por 20 anos. A “conversão de florestas em plantações de palma” ocorreu entre 1982 e 2002, justamente o período em que se intensificou a expulsão dos quilombolas do seu território.
“Desde 2002, assumimos uma política rigorosa de não desmatamento. Deixamos de converter florestas em plantações de palma”, afirma em um dos seus relatórios de sustentabilidade.
A principal fonte de gases de efeito estufa ainda é o desmatamento histórico que provocou. De acordo com o relatório de sustentabilidade de 2021, o histórico de desmatamento da empresa, o que chamam eufemisticamente de “cambio de uso de solo”, é responsável por 67,97% das emissões de carbono acumuladas, calculadas para 2021.
Apesar de todo desmatamento que provocou, hoje se autodenomina como uma empresa “carbono zero”, isso é, suas reservas capturam determinada quantidade de carbono da atmosfera que compensa o carbono que foi gerado durante o processo de plantação e que é gerado durante o processamento do dendê, além das emissões históricas devido ao desmatamento que provocou.
A mudança de postura da empresa atendeu às mudanças no mercado. Preservar passou a ser lucrativo. “Sabemos que as regras do jogo mudam constantemente (...). Um bom desempenho social e ambiental pode garantir preços premium”, na venda do dendê e seus produtos. Certificação RSPO (Round Table on Sustainable Palm Oil) e a redução de carbono “são considerados requisitos básicos necessários a qualquer operação comercial na Europa e nos EUA”, sustenta Agropalma nos seus informes.
Apesar dos conflitos agrários e do desmatamento histórico, possui certificações nacionais e internacionais. Foi a primeira empresa de palma no Brasil a obter o certificado RSPO, em 2011, principal reconhecimento internacional que qualifica como sustentável a produção do óleo de palma. Inclusive um dos diretores da Agropalma participou do Conselho de Administração da RSPO.
Produção responsável?
Em uma Ação Civil Pública do Ministério Público do Estado do Pará contra a Agropalma, o órgão público pedia que a empresa não utilizasse em suas peças de publicidade o certificado conferido pela RSPO, tendo em vista irregularidades na aquisição das terras. O juiz decidiu que “a obrigação de retirar a certificação concedida à Agropalma seria da empresa que concedeu o certificado”. A equipe desta reportagem entrou em contato com a RSPO para esclarecer se houve alguma ação por parte da organização.
Em resposta a RSPO afirmou que “nossos registros mostram que não há casos de reclamação em andamento envolvendo as operações da Agropalma no estado do Pará, Brasil” e que “o papel da RSPO não é fiscalizar o setor”.
Todos os 39 mil hectares de plantação de palma, as cinco usinas da Agropalma com capacidade de extração de 266 toneladas de cachos de frutos secos por hora, duas refinarias, duas unidades de produção de gorduras continuam certificados. “Todo o grupo (Agropalma) é certificado pelas normas RSPO”, atesta a organização, apesar da sua auditoria anual de 2021 apontar o uso do agroquímico glifosato, qualificado como "potencialmente cancerígeno" pela Organização Mundial da Saúde.
As reservas florestais possuem um papel fundamental para a manutenção da certificação porque são consideradas estoque de carbono. “A ligação entre a expansão do dendezeiro e o desmatamento será quebrada através da adoção de uma abordagem de Alto Estoque de Carbono (HCS), além de uma Avaliação de Alto Valor de Conservação (HCV) (...). A abordagem combina biodiversidade e conservação de carbono (...)”, consta em um dos indicadores de “desenvolvimento sustentável” da auditoria da RSPO.
De maneira que “a certificação RSPO requer avaliações de Alto Valor de Conservação e Abordagem de Alto Estoque de Carbono para identificar, proteger e conservar florestas e áreas importantes para a biodiversidade, recursos hídricos e ecossistema (...)”, informou a RSPO para esta reportagem.
Acumulativamente, segundo a certificadora, até 2021, os membros da RSPO preservaram 301.020 hectares de terras e florestas de importância crítica para conservação como parte da certificação. As reservas florestais da Agropalma representam 20% deste total. “A Agropalma relatou 64 mil hectares de terra designados e geridos como áreas de Alto Valor de Conservação”, informa a organização.
Medidas para a conservação das reservas também são elementos de análises da auditoria anual da empresa. Neste ponto, a Agropalma exibe à auditoria sua estrutura de vigilância das florestas.
As “parcerias sólidas”, como as que Agropalma mantém com organizações não governamentais internacionais conservacionistas, tais como Conservação Internacional e o Grupo Inovador da Indústria de Óleo de Palma (POIG), também “estabelecem confiança e nos permitem acesso ao status de fornecedor preferencial”, sustenta a Agropalma em seus relatorios de sustentabilidade. Faz parte do POIG organizações conservacionistas como Rainforest Action Network, Forest Peoples Programme e Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
Nos últimos anos, Agropalma deu um seguinte passo em suas estratégias para lucrar com a floresta que ainda está em pé. Está preparando as condições para entrar no mercado de carbono.
Em 2021, iniciou o Programa REDD+ (Redução de Emissões Provenientes do Desmatamento e Degradação Florestal), em parceria com a empresa brasileira Biofílica Ambipar Environmental, que faz parte da Ambipar Environment e que, por sua vez, integra o grupo Ambipar Group, que além de prestar serviços ambientais, oferece produtos e serviços para o setor do agronegócio e mineração.
Floresta à venda
Biofílica Ambipar Environment possui em seu portfólio de projetos a maior área sob certificação de créditos de carbono florestais na Amazônia. Possui quase 1,7 milhão de hectares de bosque sob conservação, o que representa aproximadamente 2 milhões de toneladas de dióxido de carbono não emitidos a cada ano, segundo informa o site da empresa, um negócio que poderia chegar a 20 milhões de dólares por ano.
O REDD+ é um mecanismo de compensação de carbono desenvolvido no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima que, teoricamente, tem o objetivo de estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera de maneira que as atividades humanas não representem um perigo para o planeta.
Na prática permite que empresas poluidoras compensem suas emissões oriundas de queima de combustíveis fósseis, comprando os chamados créditos de carbono. Estas empresas buscam projetos de conservação que oferecem estes créditos. “Na verdade, são créditos de poluição”, resume o coordenador internacional da WRM, Winnie Overbeek.
De acordo com o projeto do Programa REDD+ Agropalma, obtido por esta reportagem, a área do programa incluirá 50.519 hectares das 64 mil hectares de reserva em posse da empresa, localizados nos municípios de Tailândia, Moju, Tomé Açu e Acará, na beira do rio Acará, por um período de 30 anos (2021-2051), com um potencial de reduzir, segundo estudos apresentados no projeto, cerca de 672 mil toneladas de CO2eq por ano de emissões.
Monetizando
O crédito de carbono, como unidade de redução dos gases de efeito estufa, equivale a uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) não emitida na atmosfera. O preço medio mundial por crédito de carbono é 32 dólares, de acordo com o Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas.
O projeto já está em sua fase final, em processo de validação pelo programa mundial de certificação de créditos voluntários, Verra – Standards for a Sustainable Future, com sede nos Estados Unidos. Um “auditor externo independente está avaliando o projeto atualmente”, disse a assessoria de imprensa de Verra a esta reportagem. A partir da certificação se emite e comercializa os créditos de carbono. A comercialização ocorrerá já em 2023.
O projeto omite quanto a empresa espera lucrar com o programa durante os 30 anos. “Informações relacionadas às análises financeiras do Projeto REDD+ Agropalma (...) são consideradas informações comercialmente sensíveis”. Indagada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Agropalma também não revelou valores.
Indústria da Conservação
As soluções à crise climática baseadas na natureza, como têm sido nomeados nos últimos anos os mecanismos de compensação de carbono, no âmbito das Nações Unidas, pelas ONGs conservacionistas e pelo mercado, incluem os projetos REDD, que vêm sendo implantados há pelo menos quinze anos em diversas partes do mundo. Se considera que a natureza é algo que se pode colocar preço e comercializar. Uns conservam para outros poluírem e isso custa.
Nestes anos se há comprovado “que o REDD foi um fracasso, não para os vendedores e compradores dos créditos de poluição ou os muitos consultores envolvidos nos projetos, mas em relação ao objetivo pelo qual o REDD é geralmente apresentado: um mecanismo para reduzir o desmatamento e degradação florestal. Isso não aconteceu”, explica Overbeek.
Tampouco conseguiu “mitigar as emissões de carbono porque, as principais fontes, os combustíveis fósseis continuam sendo extraídos e queimados, agora sob o álibi de que parte disso é ´compensado´ conservando floresta” ou compensado com as próprias plantações de monocultivo, como o dendê.
As organizações conservacionistas são importantes atores na promoção dos mecanismos de compensação em todo o mundo. Para o coordenador internacional da WRM, estas organizações, que possuem o discurso da conservação da natureza, atuam como “empresas que em conjunto formam uma indústria da conservação”.
As ONGs assumem, analisa Overbeek, uma forma de se organizar que é empresarial, “sem se preocupar com as verdadeiras causas da destruição da natureza – como o agronegócio, mineração, a falta de demarcação dos povos que dependem das florestas -, até porque possuem alianças fortíssimas com estes setores”.
Em um relatório coordenado pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), de 2019, o então presidente da Agropalma e diretor da Associação Brasileira do Agronegócio, Marcelo Brito, comentou: “Quem imaginaria há 15 anos que empresas do setor privado e ONGs estariam sentadas em volta da mesma mesa?”.
Rio Acará. Foto: Renata Bessi
Expansão silenciosa
Desde 2007 são feitos trabalhos para inventariar a fauna e flora destas terras, as mesmas que são “vendidas” pela empresa em seus informes e ao mercado como objeto de sua proteção. “Até 2019, mais de 1.000 espécies, entre vertebrados e invertebrados, foram registradas e monitoradas nas reservas florestais”, informa Ambipar no comunicado que anunciou ao mercado o lançamento do projeto REDD+ Agropalma.
O papel principal deste mapeamento e monitoramente é o da organização Conservação Internacional e de pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Pará (UFPA).
O plano da Agropalma é ampliar a área de monitoramento da biodiversidade para além das suas terras e incluir as fazendas dos produtores que fornecem o dendê para ela. Até 2025, pretendem alcançar 24 novas áreas florestais, com o apoio da Conservação Internacional.
A colaboração entre Agropalma e Conservação Internacional, com o passar do tempo, evoluiu do monitoramento inicial da biodiversidade para incluir o “desenvolvimento social, a governança e o planejamento territorial”, com o apoio da UFPA, como relata a empresa em seu relatório de sustentabilidade de 2019.
Tendo como espelho o modelo de conservação que se está implementando nas reservas da empresa, a Conservação Internacional, em parceria com a Aliança para a Restauração na Amazônia, com o financiamento da Agropalma, fez um estudo que propõe um planejamento territorial para a microrregião de Tomé-Açu – que inclui os municípios de Tomé-Açu, Tailândia, Acará, Moju e Concórdia do Pará-, justamente o epicentro da palma no Brasil, apontando quais são as áreas prioritárias para conservação, para restauração de florestas e para a expansão da palma.
A aposta da Conservação Internacional é que Agropalma exerça “liderança” para “seguirmos investindo em ações locais articuladas com politicas nacionais (...)”, de maneira a “integrar a proteção da natureza com a produção em escala”, menciona a organização conservacionista no seu relatório de impactos da parceria com a Agropalma, de 2020.
A ideia é construir o que chamam Corredores de Sustentabilidade, formados por “terras contiguas controladas por empresas do dendê, muitas destas, resultantes de apossamento ilegal”, explica o pesquisador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, Elielson Pereira da Silva.
O incentivo é a possibilidade de rentabilizar estas florestas com os mecanismos de compensação de carbono. “Além da venda de produtos florestais, a criação de outros mecanismos de pagamento por serviços ambientais, como proteção da água e REDD+, possibilitariam maximizar os ganhos com a floresta em pé”, diz o estudo.
A bacia do Alto Rio Acará, onde está a comunidade da Nossa Senhora da Batalha, é considerada pelo estudo uma área de “alta prioridade” de conservação para a conformação destes corredores. Tomé-Açu, Tailândia e Moju, com 125 mil hectares, 117 mil hectares e 110 mil hectares respectivamente, representam mais de 90% da área com alta prioridade de conservação para a microrregião.
A área com “alto potencial” de expansão de plantação de palma está em Acará, 157 mil hectares; Moju, com 56 mil hectares; e Concordia do Pará, com 16 mil hectares. “Considerando apenas esta classe (“alto potencial”), há potencial para dobrar a área plantada de cultivos de palma na microrregião de Tomé-Açu”, disse o estudo.
Apesar de o município de Tailândia ser considerado estratégico para projetos de conservação, também se projeta uma área de expansão do cultivo de palma de 59 mil hectares.
Amazônia em disputa
A Aliança pela Restauração na Amazônia, da qual faz parte Agropalma, foi estabelecida em 2017 e “trabalha como catalisadora e amplificadora da agenda de restauração na Amazônia”, segundo sua página web. É formada por ONGs conservacionistas nacionais e internacionais, além de empresas que possuem como foco a rentabilização da natureza.
A secretaria executiva está a cargo da The Nature Conservancy (TNC), nos anos 2022 y 2023, sendo que nos quatro anos anteriores esteve a frente a Conservação Internacional. Entre seus membros estão a WWF, o Instituto Tecnológico Vale, vinculado a empresa Minera Vale.
A organização Parceiros pela Amazônia (PPA), formada por ONGs e por empresas como Cargill, Vale, Alcoa e a Associação Brasileira do Agronegócio, liderada pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), é outra articulação da qual faz parte a Agropalma. Entre as linhas de ação da organização está o estímulo ao uso das reservas em propriedade privada na região, destacando as formas de explorar estas florestas, uma delas é pelos serviços ambientais.
O estudo Usos socioambientais de reservas privadas: diagnóstico e perspectivas para a sustentabilidade de usos da terra, de 2020, realizado pela PPA, contou com a participação da empresa Biofílica, a mesma que impulsa o Programa REDD+ Agropalma, e que possui um banco de florestas para compensação de carbono em reservas legais de mais de 4,6 milhões de hectares em todos os biomas do Brasil, que estão expostos em seu site para ser comercializados.
O coordenador internacional da WRM alerta que, desde o Acordo de Paris sobre o Clima, adotado em 2015, se observa um movimento muito maior no Brasil em termos de projetos de compensação de carbono e a Amazônia é um dos principais focos destes projetos.
O Acordo de Paris estabelece que todos os países do mundo, e não apenas os industrializados, como estabelecia o Tratado de Quioto, devem ter um plano de mitigações de emissões de carbono.
“A Amazônia é um território disputado mundialmente por isso. Existem muitos projetos REDD acontecendo com compradores internacionais. Novos projetos estão sendo criados. Como tudo isso será coordenado para não ter ´dupla ou até tripla contagem´ e outros problemas, não sabemos ainda”, porque isso depende da criação de um mercado de compensações com regras claras, algo que ainda no existe no Brasil.
O que “sabemos é que apenas reduções reais das emissões de carbono podem fazer a diferencia” para deter a crise climática, argumenta Overbeek, e não a “criação de mercados de compensações”.
Rio Acará. Foto: Renata Bessi
QUEM É DONO DA TERRA?
A intensificação do cercamento das terras que vivem hoje os quilombolas da Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará faz parte de um processo histórico de expulsão, ao qual eles e seus antepassados têm sobrevivido.
A realidade é que “ao longo da história a gente foi sendo expulso de um lado para outro dependendo do interesse econômico que se tem sobre as terras que vivemos”, lamenta Pimenta, presidente da associação de quilombolas.
Maria recorda a pressão que sua família sofreu para abandonar a comunidade Nossa Senhora da Batalha. “Chegaram ameaçando a gente. Era uma perseguição. Não tinha condição. Apesar de viver décadas no mesmo lugar, a gente não tinha documento da terra”, lembra Maria. “Para não dizer que estavam expulsando, disseram que a terra tinha dono e que ofereciam um dinheiro, uma mixaria, para gente sair. A gente não teve opção”.
De acordo com o professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Elielson Pereira da Silva, que participou de estudos antropológicos que atestam a presença histórica de quilombolas na região, inclusive da comunidade Nossa Senhora da Batalha, se montou, nas décadas de 1980 e 1990, toda uma “arquitetura fraudulenta” para expulsar os indígenas e quilombolas.
“Depois de que se obtinha os documentos da terra de forma fraudulenta, iam até o território, diziam que a terra tinha um proprietário e, baixo ameaça, davam alguns dias para as pessoas saírem, dando uma quantidade muito pequena de dinheiro. Assim foi feita toda uma “limpeza” do Alto Acará”, relata o pesquisador.
A expulsão de indígenas, ribeirinhas e quilombolas pela expansão do dendê teve como resultado, de acordo com Silva, a formação de adensamentos populacionais precários nas margens das rodovias, as Vilas Palmares, Turi-Açu e Vila da Balsa, rodeadas pelo monocultivo.
Cipriano dos Santos, da ARQVA, recorda como sua família foi expulsa da sua casa nas margens do rio Acará
“Desde os anos 80 as pessoas estão sofrendo deslocamentos forçados. A consumação desta expulsão vai acontecer em meados dos anos 1990”, explica o investigador.
Dona Maria vive hoje com sua filha, em um terreno alugado cercado por dendê. “Parece que estamos presos. É dendê por todos os lados”.
Dona Maria vive hoje em uma casa alugada rodeada por palma. Foto: Anderson Barbosa
As denuncias de aquisição fraudulenta das terras que hoje estão em posse da Agropalma têm sido alvo de investigações e ações civis públicas por parte de Defensoria Pública Agraria de Castanhal, no Pará, e do Ministério Público do Pará, desde pelo menos 2016.
As matrículas de propriedade de duas de suas fazendas, a Castanheira e a Roda de Fogo, foram canceladas em 2018 por prática de grilagem (falsificação de documentos), por meio de uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado do Pará. Os documentos de propriedade foram emitidos por cartório fictício, sentenciou o juiz que julgou o caso.
Em 2021, diante da apelação da Agropalma, o Tribunal de Justiça do Pará reafirmou a sentença de 2018. “As certidões de matrículas dos imóveis objeto do negócio foram emitidas por órgão inexistente (...). Reputo acertada a sentença que reconheceu a falsidade documental em relevo e declarou a nulidade das escrituras públicas, com ordem de cancelamento das respectivas matrículas dos imóveis (...)”, sentenciou a desembargadora Célia Regina de Lima Pinheiro.
“A gente não tem papel, mas eles também não. A gente já estava lá quando eles chegaram. Esta terra é de quem morava e plantava antes que eles chegassem e começassem a plantar dendê”, reclama dona Maria.
Vale tudo pelo título
Até alguns anos atrás nesta região havia poucos títulos de terra, explica o advogado e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, integrante da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia, Girolamo Treccani. “O documento como tal, até há pouco tempo, não era tão fundamental. Não era o papel que dava segurança, era a presença na terra”, afirma.
Esta relação começou a mudar com a chegada das empresas de dendê na região. “O papel, o documento passou a ser essencial. Se antes, há 20 anos, o documento era importante, mas não era o mais importante, começou a ter um valor fundamental (...). Passou a ser não somente garantia de posse, como também (requisito) para poder entrar no mercado de terra”, explica Treccani que é autor do livro Violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará.
O documento da terra significava, e significa, para as empresas de dendê segurança jurídica para os negócios. Dois mecanismos, a violência e a grilagem, foram utilizados para que as terras fossem integradas ao mercado, explica Treccani.
Um indício de que a falsificação de documentos das terras foi e ainda é uma prática recorrente, é que nos registros dos próprios órgãos do Estado encarregados da regularização da terra, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), existem “municípios com mais papéis do que terras”, explica o advogado.
É o caso do município de Tailândia. De acordo com relatório da Conservação Internacional no Brasil, em 2017, a área cadastrada no CAR, 499.656 hectares, era maior do que a área do município, 443.025.
As estratégias fraudulentas o violentas, descritas pelo professor, para a “regularização das terras” entram em crise quando se coloca “no caminho do agronegócio uma comunidade que se diz indígena ou que se diz quilombola”, quer dizer, quando os indígenas e quilombolas começam a reivindicar as terras de onde foram violentamente retirados ou cujos documentos foram conseguidos pelas empresas de forma fraudulenta.
As comunidades quilombolas da Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turi-Açu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará não são as únicas comunidades tradicionais que estão lutando para voltar ao seu território ou para não serem engolidas pelo dendê. Os quilombos Nova Betel, Alto Acará Amarqualta e o povo indígena Turé Mariquita Tremembé, por exemplo, travam a mesma luta contra a empresa Brazil BioFuels, como relata um informe da organização Global Witness.
O território reivindicado pela associação, representada pela Defensoria Pública do Pará, coincide principalmente com as reservas legais das fazendas Roda de Fogo e Castanheira, cerca de 18 mil hectares.
“A área que hoje a empresa tem verde, que isso fique bem claro, são as áreas das comunidades Nossa Senhora da Batalha, Santo Antônio, Gonçalves e da Balsa”, as duas primeiras “foram expulsas e as outras duas estão resistindo, seguem no território”, cercadas pela palma. São os territórios de estas quatro comunidades que a associação quilombola reivindica em um mesmo processo administrativo que tramita no Iterpa.
Depois que as matrículas de propriedade da Agropalma foram canceladas pela sentença judicial, as terras passaram a ser públicas, mas continuaram sob posse da empresa, com a “impossibilidade de disposição das terras para transações no mercado”, como estabelece a sentença judicial que anulou as matrículas.
Apesar disso, a mesma sentença deixou aberta a possibilidade de que a Agropalma regularizasse as terras. E é o que está tentando fazer. A Agropalma abriu junto ao Iterpa novos processos para regularizar as mesmas terras. Para isso teria que comprar as terras que agora são do estado do Pará. “É possível tamanho cinismo?”, reagiu Santos Pimenta.
Em 2021, o Iterpa publicou no Diário Oficial do Estado do Pará, um edital de requerimento de compra de terras públicas, indicando como requerente da compra, das duas fazendas, a Agropalma. Se não houvesse reclamação pública no prazo de 15 dias, a compra procederia. O Ministério Público do Pará, por meio de uma Ação Civil Pública, contestou a venda das terras.
A Defensoria Pública também interpelou, por meio de uma ação civil pública, ao Iterpa para que suspendera as tramitações dos processos da Agropalma, justificando que o processo quilombola possui prioridade na tramitação e titulação das terras.
Conforme norma constitucional, a regularização de terras indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais e as unidades de conservação possui prioridade em relação às grandes propriedades.
“Nós detectamos violação da preferência (...), o processo quilombola estava sendo preterido por anos. Tinha sido arquivado. Em determinado momento o Iterpa disse que perdeu o processo, enquanto o da Agropalma estava caminhando”, explica a defensora pública Andreia Barreto.
Em uma ação de fevereiro de 2022, a Defensoria Pública argumenta que a “conduta do Iterpa tem agravado a situação de conflito na área de pretensão da associação, à medida que autarquia estadual comporta-se como se a Agropalma fosse dona da área”.
A resposta do Iterpa à Defensoria, acedida por esta reportagem por meio de documento anexado ao expediente da ação civil pública, foi que os processos administrativos de regularização das terras da Agropalma já tinham sido suspensos.
Isso porque, justifica o Iterpa, de acordo com a lei do estado do Pará sobre a regularização fundiária em terras públicas, só poderão ser regularizadas terras que “não haja impugnação legítima de terceiros”.
Além disso, o órgão citou o decreto estadual sobre regularização fundiária que diz que não serão objeto de regularização “áreas sob demanda judicial em que sejam partes o ITERPA ou o Estado do Pará” e áreas com “porção do imóvel rural afetado pelo conflito fundiário coletivo”.
A Agropalma, por primeira vez, admitiu em seus informes, no final de 2022, a existência da disputa pelas terras que sempre propagandeia como suas. Também, por primeira vez, reconheceu a demanda da associação quilombola.
Em seu último relatório de sustentabilidade de 2021, publicado no final de 2022, a empresa disse que terá que esperar o resultado do processo de regularização fundiária das comunidades quilombolas.
Enquanto o processo de regularização das terras quilombolas não for concluído, os processos da Agropalma devem ficar paralisados. “Se o presidente do Iterpa disser que é improcedente o pedido (de regularização das terras quilombolas), então voltam a tramitar os processos de regularização fundiária da Agropalma. Se ele disser que é procedente, os processos da Agropalma serão arquivados definitivamente”, explica a defensora pública Andreia Barreto.
Enquanto isso, ressalta a empresa, “pedimos que uma das nossas ONGs parceiras locais nos auxiliem na avaliação da situação” e “contratamos um especialista para a revisão do caso”.
REDD+ Agropalma em terras demandadas por quilombolas
A equipe desta reportagem pôde constatar, utilizando as coordenadas geográficas do projeto do Programa REDD+ Agropalma, que parte da floresta que será rentabilizada pelo programa faz parte do território demandado pela Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará, em órgãos judiciais y administrativos do Estado brasileiro. Terras que tiveram a matrícula de propriedade da Agropalma canceladas pela Justiça.
No projeto do programa, que é avaliado pela certificadora VERRA, Agropalma não menciona as disputas que envolvem estas terras.
A equipe de reportagem perguntou à assessoria de imprensa da Agropalma sobre a sobreposição das florestas incluídas no programa REDD+ com o território demandado pelos quilombolas y com as terras que tiveram as matrículas de propriedade canceladas. Não houve resposta.
A questão foi colocada também à assessoria de imprensa de Verra. A resposta foi: “Notificaremos o auditor externo independente sobre sua preocupação”.
Agropalma identifica 23 comunidades que “são direta ou indiretamente influenciadas pelo Programa”. Como descrito no projeto, foram aplicados questionários, foram realizados diálogos e entrevistas com estas comunidades por uma empresa contratada pela Agropalma.
Apesar disso, não foi realizada uma consulta às comunidades que garantisse a aplicação dos padrões internacionais previstos pelo Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Estes padrões garantem não apenas o direito das comunidades de ser informadas, mas também que se realize um processo de consulta livre de interesses particulares, no qual se gere condições para que as comunidades possam decidir pela realização, ou não, do projeto.
A defensora pública do estado do Pará, Andreia Barreto, ressalta a necessidade de se realizar consulta às comunidades quilombolas considerando os parâmetros internacionais previstos na Convenção 169 da OIT
Um eixo que atravessa todo o projeto do Programa REDD+ Agropalma é o aumento da vigilância das florestas para a manutenção dos estoques de carbono. “O Projeto visa aumentar a eficiência das operações de vigilância patrimonial. Desta forma as operações de vigilância terão um grande incremento no processo de inteligência relacionado ao monitoramento (remoto e contínuo) e gestão territorial”, argumenta.
Entre os impactos negativos mencionados no projeto está a diminuição da mobilidade de comunidades nas áreas florestais. “Algumas comunidades praticam o extrativismo como forma complementar de renda ou para obter diversidade alimentar (...), poderão ser impactadas negativamente devido a restrição do acesso aos recursos florestais da Fazenda Agropalma (...)”.
“Quem preserva a natureza não é a Agropalma. Quem preserva a natureza é o indígena e quilombola. Isso aqui era tudo mata. O que ela fez foi destruir tudo e plantar dendê. Agora diz que é sua a reserva legal e quer de novo nos expulsar. É muito cinismo”, disse Santos Pimenta.
Rio Acará. Foto: Renata Bessi
A RETOMADA
Os quilombolas iniciaram a reivindicação do seu território de forma organizada a partir de 2015. “Naquele ano meu irmão foi detido porque estava pescando”, recorda Santos Pimenta, que tem recebido ameaças e foi incluído em um programa estatal de proteção a vítimas. “A gente não teve escolha. A saída foi começar a se organizar para reivindicar o território de volta”.
Neste processo, os quilombolas têm desafiado o esquema da segurança privada da Agropalma. Em fevereiro de 2022, ocuparam as terras da Nossa Senhora da Batalha. “Nós tomamos a decisão de tomar nosso território. Ocupamos. Aí foi a felicidade que brotou, sabe? Aqui dentro da (Vila) Palmares nós não vive, nos sobrevive. Porque a vida digna é lá, no nosso território. Nós não somos culpados de nada, porque estamos dentro do que é nosso”, sustenta o quilombola Raimundo Serrão.
Agropalma abriu um processo judicial de reintegração de posse e os quilombolas tiveram que sair. Em dezembro de 2022, fizeram outra ocupação. Novamente tiveram que sair. O processo de reintegração de posse continua aberto.
A ação direta é justificada pelos quilombolas “pelo incumprimento da empresa em permitir o livre acesso no território”, explica Santos Pimenta, pela morosidade do órgão estatal em levar a cabo a regularização das terras e pela forma como está sendo conduzido o processo.
No final do ano passado, o Iterpa fez uma vistoria no território demandado pelos quilombolas para identificar a área pretendida. Os funcionários do órgão chegaram à conclusão de que parte da área, que inclui a Nossa Senhora da Batalha, não é território quilombola. Esta foi a mesma conclusão do relatório anterior, resultado de uma vistoria realizada em abril de 2022, o qual foi impugnado pela associação de quilombolas em novembro, por meio da Defensoria Pública.
Chegam a essa conclusão porque os quilombolas, como é o caso da comunidade Nossa Senhora da Batalha, não estão hoje ocupando estes territórios. A conclusão se sustenta na posse direta da terra que hoje é da Agropalma.
A defensora pública Andreia Barreto explica que existem duas situações jurídicas distintas no processo de regularização das terras quilombolas. Por um lado, o Iterpa reconhece a existência da comunidade Vila Gonçalves porque ela resistiu à expulsão e continua existindo na reserva legal que está sob posse da Agropalma.
“Com base nas vistoria e reuniões podemos inferir que o modelo de ocupação atual em especial a comunidade Vila Gonçalves possui características para regularização fundiária na modalidade de Território Estadual Quilombola”, relatam funcionários do Iterpa em seu relatório de vistoria, o qual a equipe desta reportagem teve acesso.
Ressaltam também “que os moradores da Vila Gonçalves residem em uma área em que ao redor estão cercados por plantios de dendê, e para sair da área deles, passam por guaritas da empresa Agropalma”.
Por outro lado, está a maior parte dos quilombolas da Associação dos Remanescentes de Quilombo das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará que não vive em suas comunidades originais justamente porque foram expulsos.
“O Iterpa no está reconhecendo o direito de regresso aos quilombolas que não estão no território e que querem regressar. Então a controversa permanece”, sustenta Barreto.
Existem tratados internacionais, como o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, “que asseguram o regresso de povos que foram expulsos, que perderam seus territórios, e nós estamos suscitando o direito de regresso destas comunidades”, sustenta.
A associação dos quilombolas, por meio da Defensoria Pública, apresentou duas impugnações às conclusões do Iterpa que ainda não foram “enfrentadas”, como menciona a Defensora Pública, pelo órgão. Nelas se contesta a conclusão de que não são territórios quilombolas.
A conclusão do Iterpa é baseada na vistoria da área feita por um engenheiro agrônomo e por geomensores. No relatório admitem que “não dispomos na equipe de campo do órgão pessoas especificas (antropólogos) que identifiquem as ancestralidades (...)”.
Em contrapartida, a Defensoria apresentou ao Iterpa uma nota técnica atestando que havia quilombos na área. A nota é resultado de um estudo realizado pela antropóloga Rosa Acevedo Marin e pelos pesquisadores Elielson Pereira da Silva e Maria da Paz Saavedra, no âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará.
Raimundo Serrão, quilombola, cujos avôs foram escravos, recorda como era a vida na comunidade Nossa Senhora da Batalha
“É preciso fazer um estudo antropológico, coisa que o Iterpa não fez”, demanda a defensora pública.
Vidas africanas no Rio Acará
O estudo intitulado “Comunidade Balsas no Território quilombola do Alto Acará e conflitos territoriais e ambientais com a empresa Agropalma S.A”, realizado no âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, revela que a região do Rio Acará foi rapidamente ocupada pelos portugueses nos primeiros anos de colonização do Brasil, justamente porque as águas mansas do Acará permitiam uma fácil mobilidade para o interior do que hoje se chama Pará. A força de trabalho era indígena e negra.
Com o fim oficial do modo de produção baseado na escravidão, os indígenas, os quilombolas vão constituindo e reconstituindo suas comunidades principalmente na beira do Rio Acará.
O investigador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Elielson Pereira da Silva, explica o processo de formação social e econômica onde hoje está a região do conflito. Esta área sempre foi território de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas
A associação de quilombolas também contesta a decisão sobre a Vila Gonçalves. “O Iterpa reconhece somente o lugar onde estão as casas dos quilombolas. A área do território da Vila Gonçalves é muito maior. A empresa não deixa que eles cacem, pesquem, sempre há conflito. A comunidade continuará controlada pela empresa”, alega Andreia Barreto.
Depois que o Iterpa decida sobre as impugnações, a associação de quilombolas deve receber as conclusões e, caso não concorde com o resultado, ainda existe a possibilidade de apelar judicialmente.
“Se o Iterpa decidir em favor da Agropalma ele determinará uma guerra. A comunidade sabe o que é dela por direito e aí a coisa complica. Nós escolhemos esta luta porque estamos num beco sem saída”, avisa Santos Pimenta.
Quilombolas na beira do rio Acará. Foto: Elielson Silva
Para esta reportagem se contatou o Iterpa e a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará. Após o envio das perguntas, não houve resposta.